Um menino copiando partituras à luz da lua

Um texto curto mas muito interessante do arquiteto catalão Carles Martí Arís sobre JS Bach, publicado na revista Palimpsesto, nº 2. pode parecer que não tem nada a ver com a arquitetura, mas tem tudo a ver com seu aprendizado.

As obras dos artistas estão, em muitos casos, entrelaçadas com sua biografia. Por isso, para entrar no tema que quero tratar (o problema do aprendizado das disciplinas artísticas, seja a literatura, a música, a arquitetura e outras) vou começar falando de alguns aspectos biográficos de um grande artista cuja vida transcorreu em relativa placidez , sem sobressaltos nem episódios marcados pela exaltação ou pela tragédia. De fato, a vida de Johann Sebastian Bach (1865-1750) não se presta à épica dos grandes acontecimentos e às paixões desatadas. Não é uma “vida de herói”, ao gosto do espírito romântico que se apoderou da cultura poucas décadas depois da sua morte. Sua trajetória pessoal tem mais semelhanças com a vida de um artesão, que acompanhava o compasso pausado do cotidiano, uma vida sempre unida ao ritmo do próprio trabalho, à ordem rigorosa dos utensílios, ao cuidado minucioso dos instrumentos e ao paciente objetivo de aperfeiçoar o que já havia sido realizado e consolidar o saber adquirido lentamente.

Neste sentido, não pode haver nada mais oposto ao estereótipo do gênio imponderado e excêntrico que tanto tem proliferado recentemente, que esse caráter trabalhador e estável que domina por completo sua vida e reflete também sua obra. Apesar desta divergência com respeito ao perfil canônico do gênio, há um acordo geral em considerar esse discreto personagem não só como o máximo representante da música barroca alemã mas também como um dos maiores compositores da história, um músico gigantesco capaz de resumir as conquistas de épocas anteriores e de antecipar, ao mesmo tempo, as que só séculos mais tarde chegariam a ser reconhecidas no universo musical.

Entre os muitos episódios que marcam a fecunda trajetória de Bach, há um em especial que, a meu juízo, ajuda a anular a aparente contradição entre sua vida e sua obra. Aconteceu em 1695, quando Johann tinha dez anos, poucos meses depois da morte do seu pai, que lhe deixou em total orfandade, obrigando-o a viver com seu irmão maior, organista em Ohrdruf, que a partir de então assumiu o papel de de tutor da sua formação musical. Nessa época, o entusiasmo do jovem Bach pela música era tão intenso que ele passava noites estudando as obras dos mestres mais reconhecidos. Sua ânsia de aprender é a origem deste episódio.

Os diversos biógrafos contam basicamente o mesmo com pequenas variações. As coisas parecem ter sucedido assim: Bach pediu a seu irmão que lhe emprestasse, para se exercitar, um livro que continha partituras de Frøoberg, Kerl e Pachelbel, entre outros, mas seu irmão se recusou a fazer isso. Então o pequeno Johann, não contente com a decisão do irmão, lhe roubou o precioso livro sem que ele notasse e se dedicou a copiá-lo com detalhe todas as noites, sempre que a luminosidade da lua o permitia. Foram seis meses de esforços obstinados que foram abruptamente interrompidos ao ser descoberto em plena ação pelo irmão. Este, irritado com o que julgou ser um ato grave de desobediência, lhe arrancou das mãos o manuscrito que com tanto sigilo vinha construindo e o rasgou perante seus olhos atônitos.

Desconhecemos os danos psicológicos que esse ato despótico possa ter causado à sensibilidade do jovem Johann, mas para efeito da sua formação musical foi, sem dúvida, um fracasso já que, aparte a lamentável destruição do manuscrito, o objetivo que seu autor buscava con essa operação de re-escritura não era outro que compreender e absorver os valores musicais que continham as partituras transcritas durante as noites de lua que o céu lhe quis presentear. Um objetivo que, pelo que hoje se sabe da música de Bach, pode-se afirmar que já havia alcançado plenamente.

Desse episódio, tal como chegou até nós, surpreende menos a estupidez e o autoritarismo do irmão mais velho que a determinação desse menino de pouco mais que dez anos que é castigado, e até humilhado, por algo que ele não podia considerar outra coisa que uma ação virtuosa. Ele queria mais que qualquer outra coisa aprender música e, além disso, sabia como fazê-lo: dedicando a isso muito tempo e atenção, exercitando-se nos aspectos técnico-práticos, escolhendo seus próprios mestres para repetir suas estratégias com a intenção de impregnar-se com a sua sabedoria. É muita lucidez da parte de um jovenzinho que, na sua idade, deveria limitar-se a obedecer mas que, em vez disso, punha todos em evidência ao afirmar, com uma serenidade insólita, uma verdade que outros não seriam capazes de descobrir ainda que vivessem cem anos: que, para um artista, a transcrição não é outra coisa que a passagem obrigatória para a criação.




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