DUAS DEFINIÇÕES DE ARQUITETURA (EXPLICADAS) - Parte 2


“Arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes sob a luz” (Le Corbusier)

Extrato do texto Arquitectura, juicio, proyecto, de Helio Piñón, publicado aqui.


"Não estou tentando corrigir uma das aproximações à arquitetura mais competentes que se conhece, mas aproveitar precisamente os termos vagos da definição para delimitar com precisão o sentido que possui, a meu juízo, o objeto arquitetônico.

Le Corbusier faz uma descrição fenomênica da obra: para isso, utiliza um substantivo e três adjetivos que traduzem a complexidade do fato arquitetônico. Jogo, no duplo sentido de processo e resultado do mesmo. Efetivamente, do mesmo modo que no jogo, o projeto tem regras que controlam ações encaminhadas a um final indeterminado, mas não casual; o resultado é imprevisível, embora não seja indiferente às ações que constituem o processo.

Sábio, porque acumula o conhecimento do passado, cada ação deve contar com todas as que lhe precederam. É um jogo no qual a consciência de quem atua transcende o propósito de vencer. Não se trata de alcançar o objetivo, já que não há nenhum objetivo pré-fixado pelas regras, e o propósito é de natureza distinta à das regras observadas. Sábio, porque acontece no cruzamento de dois tempos: o atual, que propicia a consistência, e o histórico, que garante o sentido.

Correto, significando que, por meio do bom uso das regras, aspira à perfeição do resultado. Um resultado o qual, além de buscar a exatidão e a precisão, deve resultar excelente, admirável, logo, magnífico.

A definição de Le Corbusier incorpora muitos dos atributos da arquitetura, desde o ponto de vista de quem a reconhece e desfruta; se trata da definição de um espectador de arquitetura inteligente e sensível. No entanto, não abrange os aspectos da arquitetura que têm a ver com o projeto e, portanto, com a constituição de seus objetos. Na verdade, se pode falar realmente de regras a propósito do projeto? Como deve entender-se o termo “correção”? Que entende Le Corbusier por “magnífico”?

É evidente que o termo sábio pode ser interpretado como a qualidade que condensa as de culto, educado e inteligente, isto é, não se trata de um jogo espontâneo, ingênuo nem banal. Por outro lado, não é tão óbvio o sentido do termo correto. Que sentido se deve dar à ideia de perfeição em arquitetura? Immanuel Kant, quem abordou a questão com maior inteligência e lucidez, fala de finalidade para descrever a consistência formal da obra de arte, isto é, o sistema de conexões que vinculam as partes ao todo e vice-versa.

Uma finalidade que Kant relaciona com a que é própria das relações internas que constituem os seres vivos, ainda que com a diferença essencial de que essas relações estão orientadas a um fim concreto, como é o de garantir o funcionamento das partes que asseguram a vida, enquanto a finalidade da obra de arte é uma finalidade desinteressada, gratuita, já que não está subordinada a nenhum critério que não seja a própria consistência. Em outras palavras, a finalidade de uma obra de arquitetura é a propriedade que estabelece as relações entre suas partes, prescindindo do seu papel no funcionamento prático da casa: uma escada está bem disposta se as razões que determinam a sua posição transcendem o seu papel de permitir o deslocamento vertical.

Imediatamente é preciso assinalar que isso não significa, nem permite pensar, que para projetar com critério artístico se deve prescindir da função. Ao contrário, só as organizações que contemplam o lado prático são suscetíveis de chegar ao domínio do especificamente arquitetônico, mas levando em conta de que a eficácia de um projeto não conta muito na hora da sua avaliação estética. A correção a que se refere Le Corbusier é de natureza formal, a qual contém e transcende a correção prática ou funcional, ainda que não possa ignorá-la nem transgredi-la.

Por último, Le Corbusier fala de jogo magnífico – além de sábio e correto – para enfatizar que os dois outros atributos não são suficientes: a arquitetura produz em quem a habita o efeito do excelente e do admirável. O reconhecimento por parte do habitante ou espectador da sabedoria e correção com que foi projetada e construída uma obra provoca um prazer que não tem a ver com o que produz comprovar a perfeição de um motos de automóvel, por exemplo. O reconhecimento da formalidade da arquitetura, isto é, da sua condição de objeto estruturado com critérios formais, não produz uma mera satisfação intelectual – como no caso do automóvel – mas provoca no sujeito a experiência de um prazer estético.

Um prazer estético que é diferente do prazer sensível; enquanto o prazer estético é desinteressado, isto é, não melhora a realidade nem as expectativas do espectador, o prazer sensível satisfaz o sentido que o capta, daí que quando gostamos de uma comida, tratamos de comê-la – ocasionalmente – mais do que seria prudente. Sabemos que quando acabe a ingestão se acabará o prazer. Essa diferença se deve a que, como explica Kant com clareza, enquanto o prazer sensível satisfaz o sentido que o capta – na comida, o sentido do gosto – e aí termina o processo, no prazer estético intervém os sentidos como via de captação e transmissão da percepção, mas o juízo acontece na interação dos sentidos com a faculdade do conhecimento.

Mas não deve deduzir-se do que foi dito que a experiência estética se diferencia da sensível apenas no fato de que a razão corrige a impressão dos sentidos: a razão intervem antes da experiência, proporcionando as categorias com que atuam os sentidos. Assim se supera a confusão que produz a falsa contradição entre os sentidos e a razão; assim se esclarece o mal-entendido que congelou a teoria do conhecimento por causa de debates estéreis entre racionalismo e empirismo."

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