SOBRE A RENÚNCIA E A UNIVERSALIDADE

T.S. Eliot, Ortega y Sota. Y Gombrich y Melnikov

Por: Alberto Campo Baeza 

Publicado em:
Palimpsesto Arquitectónico. Ediciones Asimétricas. Madrid, 2018.

Todo trabalho criativo, inclusive a arquitetura, exige uma certa renúncia do que é pessoal para alcançar uma maior universalidade. Assim se expressam nossos protagonistas, um poeta, um filósofo e um arquiteto.

Vocês se perguntarão: o que têm a ver um poeta, um filósofo e um arquiteto? O que tem a ver T.S. Eliot com Ortega y Gasset, e com Alejandro de la Sota?

T.S. Eliot (1888/1965) é um americano que se naturaliza inglês e que escreve poesia como os anjos. Ortega y Gasset (1883/1955) é um filósofo espanhol heideggeriano claro e transparente. E Sota (1913/1996) é um arquiteto espanhol, lacônico e bachiano. Os três poderiam ter se conhecido, porque são contemporâneos. Caso tivessem se conhecido se surpreenderiam com quantos pontos em comum tinham o poeta com o filósofo e com o arquiteto. Se tivéssemos que qualificar cada um com um adjetivo, diríamos que T.S. Eliot é transparente, Ortega claro e Sota lacônico. 

E que os três coincidem, cada um no seu gênero, poesia, filosofia e arquitetura, na exigência de uma certa sobriedade expressiva, uma certa renúncia à expressão excessivamente pessoal, como condição para chegar a ser mais universais.

T.S. ELIOT
Em seus ensaios  What is a Classic? e Tradition and the Individual TalentEliot defende com contundência a necessidade no escritor de uma certa renúncia à expressão pessoal em favor de uma maior universalidade. O primeiro texto, belíssimo, é o discurso que pronuncia como primeiro presidente da Sociedade Virgiliana de Londres, em 1944. O segundo texto foi escrito em 1919, e já aparecem nele muitos dos argumentos que estão no primeiro.

Quando um autor, em sua predileção pela estrutura elaborada, parece haver perdido a habilidade de dizer as coisas de modo simples, quando o vício do ornamento se torna tão forte que diz elaboradamente o que deveria dizer com simplicidade e, por isso, restringe o alcance da sua expressão, o processo de complexidade deixa de ser saudável e o escritor começa a perder contato com a palavra falada. (p. 30)

Sugiro que façam um teste: troquem as palavras autor e escritor pela palavra arquiteto.

Chega, pois, um momento em que uma nova simplicidade –inclusive uma relativa aspereza– é a única saída. (p. 31)

Sacrificar algumas potencialidades para explorar outras é, até certo ponto, uma condição da criação artística. (p. 32)

Sem a aplicação constante do parâmetro clássico nos encaminharemos ao provincianismo. (p. 55)

T.S. Eliot emprega o termo inglês provincial. Não sei se em inglês o termo provincial, que nós traduzimos por provinciano, tem o mesmo sentido pejorativo que tem em espanhol. [1] Mas a ideia do nosso poeta, na sua busca do universal no clássico, é muito clara.

Esta distorção faz com que se confunda o contingente com o essencial e o efêmero com o permanente. (p. 55)

Minha preocupação aqui é apenas a medida corretiva contra o provincianismo na literatura. (p. 56)

O progresso de um artista constitui um ininterrupto sacrifício pessoal, uma constante negação da personalidade. (p. 71)

Fica por definir este processo de despersonalização e sua relação com o sentido da tradição; é nesta despersonalização que se pode dizer que a arte alcança a condição de ciência. (p. 71) [2]
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ORTEGA Y GASSET
Em seu ensaio En torno al Coloquio de Darmstadt, de 1951, Ortega chega a dizer:
O estilo, efetivamente, representa na arquitetura um papel muito peculiar que nas outras artes, ainda que sejam mais puras, não possui. Isso é paradoxal mas é assim. Nas outras artes o estilo é uma mera questão do artista: ele decide –certamente com todo o seu ser e de uma maneira mais profunda que sua vontade e que, por isso, tem mais o caráter de inevitabilidade do que de arbítrio –decide por si e frente a si. Seu estilo não tem nem pode depender de ninguém mais que dele mesmo. Mas em arquitetura não acontece o mesmo. Se um arquiteto faz um projeto que ostenta um admirável estilo pessoal não é, falando estritamente, um bom arquiteto.

Em 1951 houve um congresso de arquitetura em Darmstadt ao qual compareceram Heidegger e Ortega. E surpreende que Ortega se atreva a criticar diretamente essa arquitetura pessoal –provinciana, diria Eliot– com tal clareza. Isso me faz pensar em um arquiteto extraordinário como é Gaudi, e como o seu excesso de personalidade lhe tira a universalidade que sobra em mestres como Mies van der Rohe e Le Corbusier.

E continua Ortega:

O arquiteto se encontra numa relação com o seu ofício, com a sua arte, muito diferente da relação dos demais artistas com suas respectivas artes. A razão é óbvia: a arquitetura não é, não pode, não deve ser uma arte exclusivamente pessoal. É uma arte coletiva. O arquiteto genuíno é todo o povo. Este dá os meios para a construção, dá sua finalidade e sua unidade. Imagine-se uma cidade construída por “arquitetos geniais”, mas dedicados, cada um, ao seu estilo pessoal. Cada um desses edifícios poderia ser magnífico mas, no entanto, o conjunto seria bizarro e intolerável. Em tal conjunto apareceria demasiadamente, como se estivesse gritando, um elemento de todas as artes no qual não se tem prestado atenção suficiente: o que elas têm de capricho. Essa característica se manifestaria abertamente, de modo cínico, indecente, intolerável. Então não poderíamos ver o edifício na sua soberana objetividade de grande corpo mineral. Do contrário, nos pareceria ver em suas linhas o perfil impertinente de um senhor a quem “lhe deu vontade” de fazer aquilo.

Parece que as palavras de Ortega foram pronunciadas hoje mesmo, a respeito de grande parte da arquitetura arbitrária, caprichosa, que tantas vezes se vê construída atualmente.

SOTA
Estamos cansados de ver como se busca a beleza e a excelência das coisas (talvez sejam a mesma coisa) por meio de ornamentos superficiais, sabendo que o segredo não está aí. Dizia o meu inesquecível amigo J. A. Coderch que, se supomos que a beleza definitiva é como uma preciosa cabeça calva (por exemplo, Nefertiti), é necessário que se tenha arrancado pelo por pelo, com a dor que se segue a cada pelo puxado. É com dor que temos de arrancar de nossas obras os pelos que nos impedem de chegar ao seu final simples, simples.”

Estas palavras expressivas de Alejandro de la Sota concluem o livro sobre sua obra [3] e definem com precisão a postura perante a arquitetura, e perante a vida, deste grande mestre da arquitetura espanhola que começava cada dia tocando uma sonata de Bach.

A arquitetura de Sota possui essa extrema elegância do gesto justo, da frase exata que de tão precisa se aproxima do silêncio.Silêncio da sua obra e da sua pessoa que possui a difícil capacidade de nos fascinar. Tão próximo da poesia, do impulso poético, da música calada.

A arquitetura de Sota fica plasmada especialmente no Ginásio Maravillas de Madri. O edifício, belíssimo, é de um impressionante laconismo, de uma simplicidade absoluta. Tanto que passa despercebido para o leigo em arquitetura, e lhe custará entender a beleza que contém. Pelas mesmas razões pelas que lhe é difícil entender a pintura de Mark Rothko. Essa simplicidade da arquitetura mais lógica se refletia em algo que Sota costumava dizer: “Creio que não fazer arquitetura é um caminho para fazê-la.” E quando lhe perguntavam sobre o Ginásio Maravillas se limitava a responder suscintamente: “se resolveu um problema.”

Um pouco mais e poderíamos pôr na boca de Sota que a arquitetura não consiste em deixar solta a emoção senão escapar dela, que é o que T.S. Eliot propunha para a poesia. 

Como poderíamos não reconhecer um impulso universal nos três criadores? Tenho que reconhecer, com o passar dos anos, como é grande o prazer intelectual que se produz quando na nossa memória se relacionam estes personagens e estes temas. Como é grande e proveitosa é a passagem do tempo!

NOTA BENE [4]
E quando eu já dava este texto por terminado, aparece Gombrich. Bem, não é que apareça E.H.Gombrich, cujo precioso texto La preferencia por lo primitivo conheço há muito y tenho agora sobre a minha mesa. Periodicamente volto a ler uma seleção de textos que tenho reunidos em uma estante de favoritos. Já escrevi sobre o prazer intelectual que se produz com a passagem do tempo quando se volta às origens.

O livro inicia com uma citação de Cicero que diz quase tudo: 
Mas ainda que à primeira vista nos cativem, o prazer não dura, enquanto que a própria elementaridade e aspereza das pinturas antigas mantém o seu poder sobre nós. [5]

E Gombrich nos diz:
Quanto mais o artista sabe lisonjear os sentidos, mais defesas terá que mobilizar contra essa tendência à lisonja.

Definitivamente, essa preferência pelo primitivo é uma clara maneira de expressar essa necessidade de renúncia daquilo que é demasiadamente pessoal para chegar à universalidade. Ou como diz muito bem meu velho amigo Melnikov:

Tendo me convertido em meu próprio chefe, supliquei à Arquitetura que tirasse de uma vez seu vestido de mármore, que lavasse sua maquiagem e que se mostrasse como ela mesma, despida como uma deusa jovem e graciosa. E como é próprio da verdadeira Beleza, renunciasse a ser agradável e complacente.


Tradução: Edson Mahfuz 

OBS.: Há uma aula dada em 2019 na ETSAM, exatamente sobre este tema, que pode ser encontrada aqui.


Nota do Tradutor: o mesmo sentido que tem em português.
A referência às páginas corresponde ao livro Lo clásico y el talento individual, trad. Juan Carlos Rodríguez,  UNAM, México, 2013.
3 (Ed. Pronaos. Madrid, 1990)
4 Nota bene é uma locução latina que significa "note bem", no sentido de "preste atenção". Atualmente é comum encontrá-la quando o escritor ou tradutor deseja chamar atenção do leitor sobre algum ponto ou detalhe.
5 Cicerón, De Oratore III.xxv.98.

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