ROBERT VENTURI (1925-2018)



Aprendendo de Robert Venturi:
duas ou três coisas que sei sobre ele.[1]


[1] Publicado originalmente em Arquitetura e Urbanismo, 37, agosto-setembro, 1991, São Paulo.



Por volta de 1975, quando era um estudante de arquitetura no 3º ano do curso, encontrei nas prateleiras da biblioteca um livro intitulado Complejidad e Contradición en Arquitectura, publicado na Espanha em 1972, e escrito por um certo Robert Venturi. Esse livro, entre muitas outras coisas, mostrou-me uma visão de arquitetura, uma maneira de pensá-la totalmente desconhecida para mim. Acostumado a uma ração de cursos técnicos e de desenho insossos e desconectados do ensino de projeto, e ateliês em que o ensino de projeto se limitava apenas aos seus aspectos mais pragmáticos – além de os professores não demonstrarem o menor entusiasmo pela arquitetura – o livro de Venturi abriu para mim e para alguns colegas as portas de um novo mundo.

Através da análise detalhada de obras individuais e da comparação delas entre si, Venturi foi tecendo um panorama que mostrava a um estudante anestesiado e desestimulado que a arquitetura pode ser algo fascinante, pois além de estar sempre ligada à sociedade dentro da qual se realiza, tem uma história própria em que despontam suas características disciplinares, desenvolvidas através da história, e ainda válidas até hoje. Eu poderia dizer que a leitura do livro de Venturi ajudou a dissipar quaisquer dúvidas que eu pudesse ter a respeito da escolha da arquitetura como profissão.

Esse preâmbulo sentimental fez com que eu me desse conta de que até hoje não houve uma edição brasileira de Complexity and Contradiction in Architecture[1], embora a previsão de Vicent Scully, feita no prefácio do livro, de que seria o texto mais importante sobre o fazem arquitetônico desde Vers une architecture, de Le Corbusier (1923), tenha em boa parte se confirmado.[2] Fatos como esse certamente servem para auxiliar a entender o lamentável nível teórico de nossa arquitetura atual.

O propósito desse artigo não é o de resenhar os dois livros escritos por Robert Venturi: Complexity and Contradiction in Architecture (C&C), de 1966, e Learning from Las Vegas (LLV), publicado nos EUA em 1972 e cuja autoria ele divide com Denise Scott-Brown e Steven Izenour. Minha intenção é chamar atenção para as principais ideias presentes nos dois livros, materializadas em algumas de suas obras, apontando aspectos positivos e negativos do ponto de vista da prática arquitetônica em nosso país, na última década do século. Ao mesmo tempo em que as ideias expostas em C&C tiveram impacto positivo em vários países, pela recuperação da noção de arquitetura como disciplina, o seu desenvolvimento e extensão, apresentados em LLV e materializados em sua obra subseqüente, apontam para o fim da arquitetura como a conhecemos, além de sancionarem um tipo de arquitetura superficial e irrelevante para qualquer lugar que não seja os EUA. 

É preciso olhar com muita atenção para poder separar o que nos serve das ideias de Robert Venturi. O que segue tenta servir como um auxílio nesse sentido.

COMPLEXIDADE E CONTRADIÇÃO EM ARQUITETURA, 1966


É muito importante ter-se em mente o tipo de contexto arquitetônico em meio ao qual surge o primeiro livro de Robert Venturi e desenvolve-se a sua prática. No âmbito teórico, havia uma polarização entre o interesse pelas metodologias de projeto – representadas pela ideia de realizar projetos automaticamente utilizando computadores – e a aplicação de estudos semiológicos à arquitetura.[3] No âmbito da prática arquitetônica, a arquitetura americana de meados da década de 1960 apresentava duas posições antagônicas. Por um lado, uma arquitetura que privilegiava a busca da forma como um princípio essencial, sendo o programa atendido através de distorções circunstanciais.[4] Para ambas as tendências o ornamento só poderia ser concebido como sendo relativo ao programa, no primeiro caso, ou à técnica, no segundo.

Paralelamente às correntes anti-Movimento Moderno lideradas por Jane Jacobs e Lewis Munford, Venturi propõe uma alternativa àquela situação. Em termos não doutrinários, refuta a ideia modernista de que a organização funcional de um edifício obedece a uma lógica unitária, responsável pelo seu conteúdo estético. Segundo Venturi, há muitas ‘lógicas’ envolvidas no processo de projeto, o qual consiste, em sua essência, muito mais em um processo de acomodação do que de dedução. C&C é um libelo contra a “incoerência e arbitrariedade da arquitetura incompetente”[5] e a “complicação preciosista do pitoresco e do expressionismo abstrato.[6] É também a declaração de uma posição firme tanto contra a arquitetura de simplificação – à custa da exclusão de problemas reais - quanto contra a arquitetura da falsa complexidade – em que programas simples são abrigados em complicadas formas expressionistas.

A mensagem de C&C não é normativa. O livro sugere a possibilidade de uma arquitetura concreta cujos atributos formais se legitimam por sua origem e presença na história. Mas sua característica mais importante é a de oferecer instrumentos operativos de projeto, em uma época ainda completamente dominada pela crença de que a cada novo projeto começa-se do zero, sem outro auxílio que não seja a criatividade original de cada um. A revalorização do papel dos precedentes, tanto no que se refere à criação quanto à fruição da arquitetura, fez com que alguns o considerassem o arquiteto vivo mais influente de nossos tempos, por “seu entendimento do papel que a história desempenha na busca de uma arquitetura representativa”.[7] Para Venturi, os arquitetos não devem se guiar pelo hábito, mas por precedentes cuidadosamente considerados, caso a caso.

Contextualismo

Na prática arquitetônica da época em que Venturi escreve seu primeiro livro, edifício e contexto não estabeleciam qualquer tipo de diálogo, o exterior e o interior constituíam um contínuo espacial, assim como todas as fachadas dos edifícios eram consideradas principais. A essas ideias Venturi contrapõe seu entendimento de que o significado da arquitetura “deriva de suas características interiores e de seu contexto particular”.[8] Essa ideia é de fundamental importância para o desenvolvimento da arquitetura contemporânea pois, a partir dela, e de conceitos análogos desenvolvidos na obra escrita de Aldo Rossi e no ensino liderado por Colin Rowe em Cornell, começou a ser possível transcender sua inabilidade e má vontade de lidar com as complexidades da cidade e de outros contextos.

A ideia de que forças exteriores contribuem para moldar um edifício tem como corolário edifícios de forma complexa, cujas faces respondem a situações contextuais diferentes, voltando-se a poder falar em frentes, fundos e lados. Da mesma forma, o reconhecimento de que existem diferenças entre o interior e o exterior dos edifícios faz com que a arquitetura volte a fazer parte do urbanismo.[9]

A volta da fachada

Mas há uma outra consequência sumamente importante do reconhecimento da diferença entre interior e o exterior : a fachada volta a ser objeto de projeto.

“Projetar tanto de dentro para fora quanto de fora para dentro cria tensões necessárias que nos ajudam a fazer arquitetura. Já que o interior é diferente do exterior, a parede – o ponto de transição – passa a ser um fato arquitetônico. A arquitetura acontece no encontro das forças interiores e exteriores de uso e espaço. Essas forças interiores e ambientais são gerais e particulares, genéricas e circunstanciais. A arquitetura como parede entre o interior e o exterior é o registro espacial e o cenário desse acordo”.[10]

Venturi também reabilita a noção de poché [11], oriunda da tradição acadêmica, modernizando-a com a introdução da noção de composição da parede em camadas (layering). Ambientes seriam definidos através de paredes duplas - reais ou virtuais – em que que cada camada independente lida com uma ou mais das condições de um problema. Nesse caso, o poché seria o resíduo espacial entre as camadas, podendo esse espaço ser utilizado ou não. Na escala urbana, edifícios inteiros podem desempenhar o papel de ‘poché urbano’, isto é, a massa edificada de forma irregular que medeia entre dois espaços abertos regulares, além de defini-los tridimensionalmente.

Ordem e ruptura

“Não existe arte sem um sistema”.[12]

Outra das muitas ideias presentes em C&C é a de que muito do conteúdo expressivo da arquitetura reside na distorção de esquemas compositivos de acordo com as singularidades de cada caso. Além disso, um sistema verificável, bidimensional ou tridimensional, é também um antídoto contra a arbitrariedade formal. O sistema seria o marco de referência para as trangressões impostas pelo programa e pelo contexto.[13] As próprias complexidades e contradições mencionadas no título do livro seriam o resultado de uma dialética entre o sistema e suas trangressões. O rompimento de uma ordem estabelecida a priori é o reconhecimento da variedade e do conflito presentes no programa e no contexto, em todos os níveis de experiência.

Uso das convenções

Durante todo esse primeiro livro, assim como em sua prática, Venturi enfatiza o uso de convenções arquitetônicas – tanto elementos como métodos construtivos – como ingrediente essencial para a criação de uma arquitetura que possa comunicar e facilitar a identificação do usuário com os edifícios. Essa identificação se daria por associação com os elementos e métodos convencionais empregados. Além do aspecto psicológico, haveriam razões econômicas para o uso desses elementos e métodos convencionais, comuns no modo de fazer, usar e perceber.

A partir dessa perspectiva, o trabalho do arquiteto consistiria na organização de objetos a partir de partes convencionais e na criteriosa introdução de partes novas quando aquelas não servissem mais. Para que essa arquitetura ‘convencional’ não seja confundida com a arquitetura do passado, Venturi sugere duas estratégias:

1. Uso das convenções de modo não convencional, a fim de torná-la viva;
2. Criação de “elementos vestigiais”, os quais são “o resultado de uma combinação mais ou menos ambígua do velho significado, evocado por associações, com o novo significado criado pela função modificada ou nova, estrutural ou de programa, e o novo contexto.[14]

APRENDENDO DE LAS VEGAS, 1972[15]

A partir do estudo realizado por Venturi, Scott-Brown e Izenour sobre Las Vegas, em 1970, as ideias e a prática de Robert Venturi começam a mudar drasticamente. Embora a essência seja a mesma em LLV muitas ideias propostas em C&C são levadas a extremos nem sempre fáceis de se aceitar. Em primeiro lugar, o populismo se torna um tema central e o papel do arquiteto passa a ser concebido de modo diferente. Enquanto em C&C o arquiteto era aquele que, além de resolver problemas de natureza pragmática, tentava estabelecer uma comunicação entre edifício e usuário através do uso de elementos convencionais, em LLV o papel do arquiteto passa a ser o de entender e interpretar os desejos do cliente, passando a referir-se “não ao que deve ser, mas ao que é”.[16] Aqui nota-se uma influência da sociologia americana do fim da década de 1960 e da arte Pop.

 O “galpão decorado”

A unidade estética do objeto arquitetônico, em C&C considerada difícil porém digna do esforço de buscá-la – há mesmo um capítulo entitulado “A obrigação para com o todo difícil”– já é considerada em LLV impossível de ser alcançada, e em vez dela é proposta a separação entre elementos que atendem ao programa funcional e os que desempenham um papel estético. Em último e decisivo ataque ao expressionismo dos anos 60 – representado por objetos isolados que ‘expressam’ seu conteúdo, aos quais Venturi chama de “patos” (ducks [17]) – surge a ideia do “galpão decorado” (decorated shed), determinando a autonomia dos aspectos estruturais e figurativos da arquitetura, pois o edifício consistiria em um volume simples, barato, ‘funcional’, que resolveria o aspecto pragmático do problema, sendo sobre esse galpão aplicados elementos decorativos bidimensionais, os quais tomariam conta do aspecto representativo/comunicacional.

Esses elementos ornamentais, antes oriundos da história da arquitetura e referindo-se, ainda que obliquamente, à estrutura que existe por trás da decoração, passam a ter origem, a partir de LLV, no vernáculo comercial de Las Vegas e contextos análogos – as beiras de estrada americanas, os subúrbios comerciais, etc. – a ser completamente independentes, assim como as vedações em geral, da organização espacial do edifício.

A ideia do “galpão decorado” me parece ser o corolário arquitetônico inevitável da sociedade de consumo americana. Os edifícios, especialmente para uso não residencial não são mais feitos para durar muito tempo, por isso se caracterizam por estruturas neutras (e adaptáveis a outras funções), baratas (e facilmente descartáveis) e ornamentadas com elementos históricos ‘incorretos’ e bidimensionais (facilmente substituíveis se mudar a função do edifício). Essa teoria não teve aceitação na Europa, e não me parece ter qualquer utilidade no contexto sul-americano, onde ainda contruímos visando a permanência dos edifícios. O próprio excesso figurativo dos objetos que podem ser classificados como “galpões decorados” só é cabível em situações efêmeras pois, se perdurassem, em pouco tempo se tornariam embaraçosos para todos que os utilizam.

A separação entre estrutura e fechamento, implícita nessa ideia, retorna o arquiteto à condição de ‘fachadista’ da qual já havia conseguido escapar há algum tempo. O próprio Venturi tem sido responsável pelas fachadas de alguns edifícios, cujo planejamento interior é de responsabilidade de outros profissionais. Isso não me parece exatamente um avanço para a nossa profissão…

Outro aspecto discutível dessa arquitetura é seu caráter eminentemente anti-espacial. O espaço é um resultado mais ou menos casual de decisões tomadas em planta. Perde-se assim o aspecto tridimensional da experiência arquitetônica, sobrando para as superfícies verticais o papel de protagonistas dessa nova arquitetura.

As ideias de Robert Venturi e os edifícios que as acompanham, para que se lhes dê o devido valor, devem ser separadas em duas partes bem distintas. O primeiro grupo de ideias, publicado em C&C, tem um caráter amplo e genérico o suficiente para possibilitar sua interpretação e adaptação em várias partes do mundo. Seu impacto foi tremendo em todas as partes. Enquanto as ideias que sugerem uma volta à figuratividade baseada no uso de precedentes podem ter influenciado arquitetos em todos os continentes, inclusive aqui no Brasil, outros, como Álvaro Siza, absorveram o conceito mais genérico de incorporação de elementos estruturais do contexto no qual se trabalha, criando projetos que estabelecem diálogos com esse contexto no plano formal e não simbólico. Por isso, as ideias contidas em C&C continuam sendo ricas e válidas.

Já o conteúdo de Learning from Las Vegas é bem mais restrito ao contexto americano, não devendo ser generalizado sob pena de reduzir toda a arquitetura a um tratamento de fachadas em que “a dimensão semântica é tratada como sendo supra histórica”[18], além de perder-se a qualidade espacial que é característica da arquitetura do século XX.

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[1] No final da década de 1990 essa lacuna foi finalmente preenchida, com a publicação de uma versão em português.
[2] Complexity and Contradiction divide com pelo menos mais um livro o crédito de terem influenciado decisivamente o desenvolvimento da arquitetura ocidental na segunda metade do século XX. Se trata de Archittetura della cittá, de Aldo Rossi, também publicado em 1966. Uma terceira obra influente, embora seu texto seja algo obscuro, é Intentions in Architecture, de Christian Norberg-Schulz, 1965, um livro que, focalizando o lado simbólico e linguístico da arquitetura, buscava criar uma teoria de descrição e da intenção arquitetônica. 
[3] Helio Piñon, Arquitetura de las neovanguardias, Gustavo Gili, Barcelona: 1984, p. 23
[4] Idem.
[5] Robert Venturi, Complexity and Contradiction in Architecture, The Architedtural Press, London: 1977, p. 16.
[6] Idem.
[7] Neil Levine, “Robert Venturi and the ‘Return of Historicism’, em The Architecture of Robert Venturi, University of New Mexico Press, Albuquerque: 1989, p. 45
[8] Venturi, op. cit., p. 19
[9] Venturi, op. cit., p. 86
[10] Idem
[11] “Tecnicamente, em francês, é um verbo derivado de pocher, significando, entre outras coisas, pretear e desenhar rapidamente. Em arquitetura, poché significa o preenchimento, com nanquim, de áreas residuais tais como os sólidos estruturais de uma planta. Na tradição acadêmica, onde o sistema estrutural era o de alvenaria portante, o poché auxiliava a “leitura” da planta por sua relação direta com áreas brancas por elas definidas; isto é, recintos maiores poderiam ter tetos mais altos e necessitariam de apoios maiores. Assim, os aspectos volumétricos de um projeto poderiam ser lidos a partir da abstração bidimensional da planta”. (Michael Dennis, Court and Garden, MIT Press, Cambridge: 1896, p. 5.)
[12] Le Corbusier, citado em Venturi, op. cit., p. 41.
[13] Piñon, op. cit., p.24.
[14] Venturi, op. cit., p. 38.
[15] Learning from Las Vegas, Robert Venturi, Denise Scott-Brown, Steven Izenour, MIT Press, Cambridge: 1972.
[16] Pinõn, op. cit., p. 35.
[17] “ O ‘pato’ é o edifício cujos sistemas espaciais e estruturais, e seu programa são submergidos e distorcidos por uma forma simbólica global” (Venturi, LLV, p. 87). É o edifício escultural ‘expressivo’. O nome ‘pato’ foi dado em homenagem a um açougue de aves drive-in existente na época em Long Island, New York,, que tinha a forma de um pato (LLV, fig. 74).
[18] Alan Colquhoun, “Sign and Substance: Reflexion on Complexity, Las Vegas and Oberlin, em Essays in Architectural Criticism, MIT Press, Cambridge: 1985, p. 139.

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