Arquitetura é arte? (2)

O que segue está mais para fragmento (uma parte isolada ou incompleta de algo) do que para postscriptum (uma declaração ao final de uma carta que oferece informação adicional sobre algo). Trata-se de uma reflexão em progresso sobre o status da arquitetura no âmbito das artes visuais. Como tal, não pretende ser definitiva nem excluir outras interpretações.

A arquitetura nunca teve tanta exposição, tanto nos meios profissionais como nos não especializados, quanto nas últimas décadas. No entanto, paradoxalmente, a qualidade da produção contemporânea não acompanhou o aumento exponencial de publicações, sites e programas de televisão.[1] Além disso, nos últimos 40-50 anos não houve acumulação de conhecimento arquitetônico que possa ser aplicado hoje para realizar boa arquitetura.

Na minha opinião muito desse panorama negativo se deve a um entendimento equivocado da arquitetura como arte, misturado a uma noção errônea de criatividade e uma obsessão generalizada por inovação. Muitos dos que declaram praticar a arquitetura como arte o fazem para distanciar-se dos meros mortais, os profissionais pragmáticos que constituem o corpus da profissão. Invariavelmente, não se dão conta de que a arte é uma atividade criadora de universos artificiais, não a mera gestão de imagens.

A arquitetura é uma das artes visuais? Nenhuma das principais definições de arte encontradas em dicionários ou na Internet responde a esta pergunta afirmativamente. Todas incluem aspectos como criatividade, imaginação, auto-expressão –ligados ao lado produtivo da arte– e beleza e poder de emocionar –no que se refere a sua recepção–, todos potencialmente relacionados à arquitetura mas que não a definem nem nos ajudam a decifrar o enigma aqui proposto.

Eu me arriscaria a dizer que a arquitetura, se é uma das artes visuais, o é de modo diferente das demais. As artes são um modo de (auto)expressão que não é limitado por nada nem ninguém. Geralmente o artista é alguém que se considera livre de disciplina ou convenções. Pode-se mesmo dizer que as artes gozam de uma certa irresponsabilidade. Tendo implicações utilitárias e práticas muito claros, e sendo a cidade a sua natureza –sua origem e destino–, a arquitetura tem que ser responsável em relação às pessoas a quem serve e aos lugares em que se insere, o que limita em muito os modos em que um arquiteto pode resolver um problema por meio do projeto.

Aparentemente, a maioria dos arquitetos confunde o aspecto artístico da arquitetura com a liberdade de fazer qualquer coisa, de embarcar em explorações formais muitas vezes prejudiciais ao uso do edifício ou espaço e danosas às finanças do cliente. Isso está diretamente ligado à noção dominante de criatividade: para leigos (usuários em geral, clientes, imprensa não especializada), estudantes de primeiros anos e até muitos arquitetos, criatividade é algo ligado ao imprevisto, ao insólito e ao surpreendente. O resultado disso pode ser visto em qualquer cidade do mundo, numas mais que em outras, sendo cidades como Dubai e Abu-Dabi o extremo em que a dominância da “arquitetura como arte” é quase total, verdadeiros pesadelos formais e urbanísticos em que não há distinção entre tecido e monumentos, a constituição básica das cidades há milênios.

Se aceitamos que o projeto é uma síntese formal das necessidades programáticas, das sugestões do lugar e da disciplina da construção, realizada a partir de um repertório consolidado ao longo de séculos, a arquitetura teria muito pouco em comum com as demais artes visuais.

A arquitetura pode não ser uma das artes visuais, por não compartilhar a maioria das suas características, mas parece inegável que contém um componente artístico importante. Neste ponto duas perguntas se impõem: primeiro, em que consiste esse aspecto artístico; e segundo, é possível dizer que todo projeto é uma obra de arte?

Em todo o mundo edifícios são construídos sem a ajuda de arquitetos: tantos que pode-se até dizer que as sociedades que conhecemos avançam sem  necessitar de arquitetura. Leigos interessados, construtores que aprenderam na prática, engenheiros (que não tem formação em projeto arquitetônico) realizam projetos que em muitos casos cumprem com duas das exigências básicas mencionadas por Vitruvius: utilitas e firmitas (solidez e funcionalidade) deixando seus proprietários e usuários satisfeitos. Isso é algo relativamente fácil de alcançar. No entanto, na sua esmagadora maioria esses edifícios não passam de construções bem intencionadas: nunca chegam a ser arquitetura, muito menos Arquitetura.

O que falta a esses projetos é “sentido da forma”, aquela qualidade que Le Corbusier julgava necessária para ser arquiteto e que, segundo Helio Piñón, significa ver relações onde os outros veem apenas coisas. Traduzido para a atividade projetual, ter sentido da forma significa saber dotar o projeto de uma estrutura formal/espacial que transcenda sua condição de mero aglomerado de partes. É essa qualidade adicional que distingue a arquitetura de Palladio da construção vernacular do Veneto. O que Durand ensinava na Politécnica de Paris não era outra coisa: como dotar de uma ordem formal tão clara como genérica os edifícios a serem construídos pelos engenheiros na França e suas colônias.

Não seria exatamente isso o aspecto artístico da arquitetura, a capacidade de resolver problemas de organização espacial, relação com contexto, com uma determinada técnica construtiva, ao mesmo tempo em que se cria uma ordem visual transcendente? Esse componente artístico não depende de uma abundância de recursos: normalmente em situações de escassez é mais necessário ainda possuir o tal sentido da forma. Por outro lado, a arquitetura me parece mais arte quando consegue obter resultados excepcionais sem sacrificar nenhum dos condicionantes fundamentais de qualquer situação: programa, lugar e construção. Lembrando Alberti, as grandes obras de arquitetura sempre apresentaram um ajuste e controle tal que não lhes falta nem sobra nada. Quantas obras realizadas pelos detentores do Prêmio Pritzker sobreviveriam a um escrutínio desse tipo?

Se examinarmos o classicismo e a arquitetura  moderna –os dois sistemas formais mais completos já criados– encontraremos um atributo essencial: a sistematicidade, isto é, a presença de uma ordem capaz de ser identificada e valorizada, sem que isso implique incorrer na simples regularidade ou na organicidade banal. Uma ordem determinada por um sistema formal que não é aleatório, mas relacionado a algum aspecto objetivo do problema ou derivado de algum precedente pertinente.

Portanto, o conteúdo artístico da arquitetura não tem nada a ver com seus atributos esculturais, apesar da quantidade de projetos ondulantes, retorcidos e em configurações indefiníveis que povoam as páginas impressas e digitais dos meios de comunicação. A forma como estratégia de marketing não configura necessariamente uma prática artística; a busca deliberada do artístico e do original leva comumente ao bizarro.

Se a arquitetura é uma arte ela constitui uma espécie sui generis, com suas próprias características, na qual a excelência só aparece em contadas ocasiões.

* Artigo publicado em Summa 134, Buenos Aires: fevereiro de 2014.




[1] O conceito de qualidade em arquitetura é certamente subjetivo e neste caso se refere à capacidade de criar edifícios e espaços urbanos não opressivos, em que a vida humana possa transcorrer em todo o seu potencial.

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